
Vindicta cazpirreana
No entanto, as afrontas desta ala vinham do séc. XIV. Então, João Afonso Telo de Meneses (c. 1330-1384), conde de Viana do Alentejo, empreendeu uma surtida em Penela, que lhe custou a cabeça na escaramuça com os aldeões: … o Conde de Viana, quando el Rei dom Fernando morreu, tomou logo voz por Castela e recebendo soldo de el Rei quando veio cercar Lisboa; e tendo-a assim por ele, saiu fora do lugar para tomar mantimentos contra vontade de seus donos, como os seus haviam em costume, e levando consigo uns quarenta de cavalo, sem outros peões nem besteiros, juntaram-se contra ele os das aldeias e comarca de arredor para lhos defender, todos pé terra; e embrulharam-se eles com eles, arremessaram-lhe o cavalo e caiu com ele em terra; e foi um vilão rijamente, que chamavam de alcunha Cazpirre, e cortou-lhe a cabeça e assim morreu; e os seus como o viram morto fugiram todos e os da vila tomaram voz por Portugal e assim a tinham então. [2]
A marquesada não desmobilizaria, apesar do cabaz de compras para integrar os seus próceres no regime restaurado. Assim, em 1641 (as refregas com Castela prolongaram-se até ao tratado de paz de 1668), os lusofilipinos embrenharam-se em actividades de lesa-magestade e apostaram no derrube das instituições renascentes. Denunciada a maqui(nação), a Lei dos Restauradores caiu sobre os cabecilhas. Em 28 de Julho de 1641, foi reaberta a caça aos vendidos a Castela. A montaria transcorreu de Setúbal a Caminha. A troika foi o primeiro alvo: D. Luís de Noronha Meneses (1570-1641), marquês de Vila Real, D. Sebastião de Matos Noronha (1586-1641), arcebispo de Braga, D. Miguel Luís de Meneses (1614-1641), duque de Caminha, filho do marquês e sobrinho do primaz. No dia 29 de Agosto, sete dos implicados subiram ao cadafalso no Rossio. As cabeças rolaram para que constasse por montes e vales, de Lisboa a Madrid. O prelado Sebastião conseguiu manter o pescoço a salvo, devido a considerações diplomáticas: a cartada de Roma no reconhecimento do trono joanino. Contudo, não chegaria a gozar a comutação da pena capital em pena prisional: passados poucos meses, sucumbiria no cárcere de S. Julião da Barra. Na altura, as instalações não tinham o conforto dos nossos dias, recomendável para residência do ministro dos submarinos, Paulo Portas, e para hotelaria política internacional. Da degolação também se livrou D. Francisco de Castro, arcebispo de Coimbra, inquisidor-geral, agraciado com perdão real, confirmado com a graça papal: regressou ao Santo Ofício. Os supliciados foram também objecto de confisco de fazendas e cabedais. Por quebra de descendência, a heráldica dos Meneses reapareceria, com chancela de Filipe III, no portfólio da viúva de D. Miguel, promovida a duquesa de Camiña (1641) e Grandeza de Espanha (1658). Posteriormente, D. Carlos, um ano antes do regicídio (1907), reintroduziu a linhagem Meneses nas sucessões titulares. Também integra as prosápias dos duques de Medinaceli [3] , um dos frondosos e opulentos ramos das oligarquias espanholas. Deste modo, a estirpe decapitada no Verão Quente de há 372 anos assegurou a sobrevivência imaginária.
Política do apagão
Há quem não goste de recordar estas datas, estes feitos, estes enlaces, estes desenlaces. Não foi obra de capricho a eliminação do feriado do 1.º de Dezembro. O Dia da Independência Nacional foi riscado do calendário cumprindo uma estratégia de desmemorização, no interesse de um capitalismo sem pátria e da UEA/União Europeia Alemã. UEA que montou uma operação de domínio continental, comportando-se como uma aspiradora central de economias e receitas fiscais e uma recicladora de sentimentos e convicções; UEA que cuidou da distribuição de alguns despojos pelas novas fidalguias gentílicas; UEA que tratou de aliciar os governos periféricos; UEA que conta com a solicitude dos RGP/Regimentos de Guerra Psicológica, também conhecidos como MCS/Meios de Comunicação Social. A par do saqueio material, está, pois, em marcha um apagão histórico de quanto simbolize apego patriótico, soberania, identidade, liberdade, visando o desarme das referências, das vontades e das consciências. Perante este programa, os povos perdem a sua agenda e o seu roteiro. Nesta circunstância, repelir o directório germano-unionista e a ofensiva usurária internacional é uma questão de necessidade colectiva, de afirmação dos direitos de personalidade, de refuncionamento da ordem constitucional. Tomar a iniciativa de uma resposta que integre todas as forças anti-ultimatum da UEA, conferindo a devida importância aos valores da memória, assume carácter de verdadeira salvação nacional. Neste ciclo de esbulho, traição e negação, por almas gémeas de andeiros e vasconcelos, meneses e noronhas.
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Fonte da vergonha
Ainda no ano de 1641, D. João IV, para que fosse geral o opróbrio, emendou as armas da vila, constantes do foral de D. Afonso III (1272): a espada, até aí, resoluta, de fio aprumado, passou a exibir posição pendente. O agravo redundou em 300 anos de vergonha. [4] Só foi reposta a versão do séc. XIII, a rogo da Câmara Municipal, em 1941. Salazar, consumado em assassínios políticos e vinganças de longo prazo, achou que três séculos bastavam para redimir os pecados de qualquer alma ou assunto de Estado. De resto, ainda hoje se mantém a espada invertida na Fonte Nova. Gerou-se mesmo um movimento cívico e cultural para que assim continuasse. Com efeito, a maioria da população não foi culpada do colaboracionismo de meia dúzia de espécimes azuis, administrantes da ocupação e homens de negócios. Na verdade, a espada da desonra reganha sentido sempre que as nobrezas, burguesias e cleros se passam para as bandas e para os bandos das castelas. Bem fazem os vila-realenses em salvaguardar o signo na fonte. Tem validade extraterritorial e transtemporal.
Luísas de Portugal
. Sinal dos tempos foi também emitido na envergonhada e acidentada comemoração do 102º aniversário da República, em 5 de Outubro de 2012. Assinalava-se o 5 de Outubro, a última celebração como feriado nacional, por decisão do Governo da Troika. A cerimónia, aberta em anos anteriores, decorreu, desta vez, num espaço reservado e limitado, no Pátio da Galé. O presidente da República assomou à varanda do Município de Lisboa, e coadjuvado pelo edil, puxou os cordelinhos da bandeira. Eis que Sua Excelência e seu Excelentíssimo anfitrião hasteiam o símbolo da pátria de pernas para o ar. Atesta a ciência dos campos de batalha que bandeira de avesso é sinal de que o território foi tomado pelo inimigo e endereça um pedido de socorro. Ninguém rectificou a anomalia: nem o presidente da República nem o presidente da Câmara. Cavaco não demoraria a esgueirar-se por uma porta lateral. Ao fundo do Pátio da Galé, uma mulher, digna dos falares de Fernão Lopes e dos conjurados da Restauração, bradou que não tinha dinheiro para as necessidades elementares, nem sequer para medicamentos: Todos emproados, todos de barriga cheia. Vocês não têm vergonha de olhar para a nossa miséria. Tenho uma reforma de quase 200 euros, estou farta de procurar trabalho. Os seguranças dos apoderados da República removeram a vox populi: uma anónima ousara perturbar o insonso discurso presidencial. E Luísa Trindade foi tema da Imprensa, Rádio e Televisão, habitualmente vassalas de marqueses e markeleses: as pessoas têm de começar a gritar . Durante uns instantes, Luísa correu pela internet, entrou nas ondas, gastou tinta. Ela representa o Coro das Luísas de Portugal, que clama contra um poder que terá forçosamente de cair e que merece ser julgado por uma sucessão de atentados constitucionais e penais: económicos e financeiros, sociais e culturais. Sem olvidar os crimes de lesa-pátria.
A cantora lírica Ana Maria Pinto irrompeu, então, entoando a Firmeza. [5] canção da resistência antifascista, musicada por Fernando Lopes-Graça (1906-1994), com letra de João José Cochofel (1919-1982):
Firmeza
Sem frases de desânimo
Nem complicações de alma,
Que o teu corpo agora fale,
Presente e seguro do que vale.
Pedra em que a vida se alicerça,
Argamassa e nervo,
Pega-lhe como um senhor
E nunca como um servo.
Não seja o travor das lágrimas
Capaz de embargar-te a voz;
Que a boca a sorrir não mate
Nos lábios o brado de combate.
Olha que a vida nos acena
Para além da luta.
Canta os sonhos com que esperas,
Que o espelho da vida nos escuta.
Os convidados, uns sinceramente, outros na situação de apanhados, aplaudiram.
Saídas de emergência
A espada da Fonte Nova e a bandeira do Município representam o Estado da Nação e o estado a que isto chegou. [6] O Miguel de Vasconcelos, a duquesa de Mântua, o marquês de Vila Real, o duque de Caminha, o primaz das Hespanhas sobreviveram com outros nomes. As elites cleptocráticas, frequentemente vinculadas a potências estrangeiras, vão-se reproduzindo, revezando e acomodando. As famílias sistémicas, as hereditárias e as ocasionais, firmam o seu pacto de estabilidade. Sabem que carecem de legitimidade e, portanto, há que afinar e afiançar fórmulas de sustentabilidade. Evidentemente: ao serviço dos carcereiros do Portugal Amordaçado [7] e das clientelas da Europa connosco. [8] Para isso, buscam o consenso dos sectores hegemónicos: os internos e os externos. As classes altas cultivam a usurpação das baixas e o conúbio palaciano como regra de empreendedorismo e estilo de vida. Em 2013, no terceiro ano da terceira perda da Independência, as classes populares e as classes médias vão tomando nota do seu cerco e do seu sufoco, confrontadas com a degradação do quadro democrático e a míngua de recursos. A luta de classes assume várias expressões e tende a subir de registo na escala de Richter. As placas tectónicas movimentam-se. Para as minorias mandantes e privilegiadas, a grande maioria dos portugueses não passa de um número de contribuinte, de um conjunto de indefesos a pilhar, a desempregar, a exilar. Mas as vítimas reagem e contra-atacam. Milhões de portugueses repudiam as políticas em curso e os seus aplicadores, bons alunos da EOS/Escola de Ocupação & Saque. As figuras do Estado-fantoche são invectivadas, apupadas, assobiadas, execradas, mal saem à rua, quando decidem abrilhantar qualquer acto ou proferir qualquer palavra. [9] Conforme dados do RASI/Relatório Anual de Segurança Interna, no decorrer do ano de 2012, tiveram lugar 3.012 manifestações (termo que cobre desfiles e concentrações de diversa duração e amplitude, acções-relâmpago, paralisações com impacte público). Também se poderá tomar como medida da temperatura laboral e social, a concretização de quatro greves gerais em dois anos de mandato deste Governo. As entidades do compromisso de condenação nacional fogem pelas portas laterais e traseiras, fecham as portas no Dia da Liberdade, alteram os trajectos, anulam ou adiam sessões e visitas. Têm medo das manifestações. Têm medo das oposições. Têm medo das eleições. Têm medo de quem os elegeu. Têm medo de quem perdeu o medo. O poder desconfia do povo. O povo desconfia do poder. O contrato social está minado. A aleivosia esconde-se nos armários. A cólera extravasa nas ruas.
O povo é sereno. [10]
O povo português revelou-se o melhor povo do mundo e o melhor activo de Portugal. [11]
Diz-se.
1. Portugal – Dicionário Histórico, Corográfico, Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico, Vol. V, Romano Torres Editor, 1904-1915, Lisboa.
2. Crónica de D. João I, Fernão Lopes.
3. Nobreza de Portugal e do Brasil, Vol. III, Editora Zairol Ldª, 1989, Lisboa.
4. Heráldica e documentos antigos, Câmara Municipal de Vila Real.
5. Breve, antologia poética, Editorial Caminho, 2010, ISBN 9789722125130.
6. Remate da alocução de Salgueiro Maia (1944-1992), lançando o repto da tomada de Lisboa às suas tropas, na manhã do 25 de Abril de 1974, Regimento de Cavalaria, Santarém.
7. Soares, Mário, Le Portugal bailloné, Calman-Levy, 1972. Portugal Amordaçado, Arcádia, 1974. Na versão portuguesa, o autor suprimiu as alusões ao comprometimento da Igreja Católica com a ditadura. Em 1972, estava exilado em Paris; em 1974, integrava o Governo Provisório em Lisboa. Meses depois, celebraria um compromisso com as forças da Direita e o patriarca de Lisboa, D. António Ribeiro, assegurando uma convocatória laica e cristã para a manifestação da Fonte Luminosa, Lisboa, 19/07/1975.
8. O Partido Socialista, controlada a Revolução, desencadeou uma campanha amorosa sobre o relacionamento de Portugal com as potências continentais, sob a consigna Europa connosco, 1976.
9. Público, 28/03/2013. Relatório da RASI, entregue na Assembleia da República.
10. Pinheiro de Azevedo (1917-1983), primeiro-ministro do VI Governo Provisório, comentário a respeito de um incidente no decurso da manifestação do PS/PPD, Terreiro do Paço, 06/11/1975.
11. Vítor Gaspar, então ministro-delegado de Wolfgang Schäuble, Assembleia da República, 04/10/2012.
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